domingo, 1 de fevereiro de 2015

Racionais – Cores e Valores (2014)




Muito pode ser dito sobre o aguardado quinto disco do Racionais MCs. As opiniões divergem mas ninguém discorda quanto à quebra de expectativa que o álbum provoca.
12 anos depois de “Nada como um dia após o outro dia” eles retornam com “Cores e Valores” e a novidade não está apenas no fato de lançarem um novo trabalho após mais de uma década, mas na própria forma como o grupo se apresenta. A mudança é perceptível, nítida e causou as mais diversas reações. A essa altura o novo álbum já é sucesso de crítica sendo considerado um dos melhores lançamentos de 2014, o melhor, segundo a lista da Rolling Stone publicada em janeiro de 2015.
Os elogios angariados pela nova obra são por razões óbvias. A primeira: é um novo disco do Racionais MCs, e, isso por si só já diz muito. Trata-se da banda mais importante do rap brasileiro e, superando fronteiras e preconceitos, tornaram-se um dos nomes mais relevantes da música produzida no Brasil nos últimos 20 anos.

O quarteto paulistano também optou pelo risco e foi uma escolha sem medo, e feliz. As músicas são curtíssimas se comparadas com os trabalhos anteriores, clássicos como O Homem na Estrada e Capítulo 4, Versículo 3, têm 8 e 7 minutos, respectivamente, enquanto as faixas de “Cores e Valores” tem duração média de 2 a 4 minutos. O novo trabalho do Racionais MCs resgata o conceito de álbum, do diálogo entre uma música e outra em uma obra, coisa difícil de se manter em tempos de downloads e streamings. Saíram na frente com a proposta. O próprio KL Jay alerta que este é um disco para ser ouvido na íntegra, na sequência proposta.

Os temas abordados também se diversificaram. Para além das dificuldades da periferia brasileira (e até essa crítica assumiu outro tom), o Racionais falam agora das vitórias alcançadas e de amor. Os fãs mais ortodoxos esperavam algo parecido com o que foi apresentado em 2002, quando “Nada como um Dia após o outro dia” foi lançado, mas aquele trabalho já rompia com a narrativa de violência e exclusão apresentada em Sobrevivendo no Inferno (1997).

A realidade é que para muitos o Racionais havia se tornado muito mais que um grupo de rap. O quarteto paulistano se transformou em um símbolo, cujas ações, falas e  frases foram apropriadas por todos os que se sentiam representados por elas e a reação a qualquer mudança de postura não seria amena, tamanha a importância que seus discursos ganharam, mesmo que não se sentissem tão a vontade com isso.
Enfim. O Brasil mudou, a realidade dos integrantes do Racionais idem e, nada mais natural que a música feita por eles acompanhasse essa mudança.
O discurso já se mostra ácido no início quando Brown declama “Na terra onde o herói matou um milhão de índios” e segue. O grupo continua falando do lugar de onde vierem, sob uma nova perspectiva, mas é do lugar do negro. Ice Blue acentua seu poder de consumo na faixa “Eu compro”, mas deixa claro que nem o poder aquisitivo altera o fato de ser um negro no Brasil:
 “um pingente de ouro com diamante safira, no pescoço  um cordão os bico vê não acredita, que um neguim sem pai que insiste pode até chegar, entrar na loja ver uma nave zero e dizer, eu quero eu compro e sem desconto, à vista, mesmo podendo pagar tenha a certeza de que vão desconfiar, pois o racismo é disfarçado há muitos séculos, não aceita seus status, nem sua cor”.

Os versos acima talvez sejam um pouco do que representa “Cores e Valores”. O indivíduo negro que outrora somava-se à massa de despossuídos ostenta uma vitória e uma condição que nunca lhe foi atribuída ou permitida.  Possibilidade proibida, quase como uma afronta, e que agora é assumida, fazendo coro aos garotos do “rolézim” e aos pobres que agora incomodam a classe média brasileira quando ocupam, sem pedir licença, shopping centers e aeroportos.

Em “Você me Deve” Brown exclama “Vida loka original, dos barracos de pau. Percebeu, que o vil metal só não quer quem morreu, morou meu? ”
Os Racionais , como não poderia deixar de ser, continuam a cantar a periferia, mas uma periferia que percebe seu poder, ganhou alguma mobilidade – ainda que mínima -  e quer mais, muito mais do que falar das suas mazelas. Quer espaço. Quer poder. Quer voz, num momento em que tem condições para tanto. A capa de Cores e Valores reflete essa periferia, que não vai pedir licença e vai ocupar o lugar que lhe é devido. É trajetória do próprio grupo, descrita de forma metafórica naquela imagem. Uma espécie de síntese das batalhas empreendidas em 25 anos, período em que viveram no front e tiveram que lidar com o peso da narrativa apresentada por eles bem como os ataques de um país moralista, elitista e, desde sempre, racista. 
  
 O disco abre espaço também para a auto-reflexão do grupo que completa duas décadas e meia e experimentou episódios gloriosos e tristes. Em “A Praça” Edi Rock relembra o evento trágico acontecido durante o show da banda na Virada Cultural 2007, que resultou em diversos feridos na Praça da Sé.  Fato superado. Os sobreviventes do inferno mostraram em sua turnê comemorativa o quanto estão amadurecidos bem como a capacidade agregadora do seu discurso, que hoje  atinge jovens e adultos das mais diversas classes e localidades. A voz forte de Edi Rock retorna em “O Mal e o Bem”, faixa que traz elementos da música negra produzida em meados dos anos 80, a qual o rapper relembra os 25 anos de trajetória e os momentos marcados pela música do grupo.

Quanto vale o show”, primeira música do novo trabalho a ser divulgada, traz o sampleia “Gonna fly Now”, tema de Rocky o Lutador. A trilha é emblemática e, a exemplo de “O mal e o Bem” também é saudosista. Brown relembra sua juventude na selva de pedra paulistana, os primeiros bailes, as dificuldades financeiras e sua relação com o samba e o soul, com ídolos como Curtis Blow e Bezerra da Silva. O verso é viceral e tenta trazer a energia daqueles dias e denuncia que, ainda naquela época “O preto vê mil chances de morrer, morô? Com roupas ou tênis sim, por que não?”.  Anos atrás Mano Brown foi surpreendido com a reação virulenta dos fãs contra a sua “Mulher elétrica”, música dançante, com base funk sampleada do clássico Eletric Lady (Confunkshun). Sem se intimidar, Paulo Soares apresenta outra balada soul com “Eu te Proponho”, primeira letra romântica da discografia do Racionais, homenageando mestres como Cassiano, já apresentando um pouco do que pode vir a ser o seu já anunciado disco solo.
Embora não seja o tema principal, o crime e a violência continuam a ser tratados nos versos do grupo, como na faixa “A escolha que eu fiz”. 

Cores e Valores não é unanimidade, como nenhum dos álbuns anteriores, embora possa ser o mais controverso eles, mas, assim como os demais, demarca sua passagem com dignidade.