Muito pode ser dito sobre o aguardado quinto disco do Racionais MCs. As opiniões divergem mas ninguém discorda quanto à quebra de expectativa que o álbum provoca.
12 anos
depois de “Nada como um dia após o outro dia” eles retornam com “Cores e
Valores” e a novidade não está apenas no fato de lançarem um novo trabalho após
mais de uma década, mas na própria forma como o grupo se apresenta. A mudança é
perceptível, nítida e causou as mais diversas reações. A essa altura o novo
álbum já é sucesso de crítica sendo considerado um dos melhores lançamentos de
2014, o melhor, segundo a lista da Rolling Stone publicada em janeiro de 2015.
Os
elogios angariados pela nova obra são por razões óbvias. A primeira: é um novo disco
do Racionais MCs, e, isso por si só já diz muito. Trata-se da banda mais
importante do rap brasileiro e, superando fronteiras e preconceitos,
tornaram-se um dos nomes mais relevantes da música produzida no Brasil nos
últimos 20 anos.
O
quarteto paulistano também optou pelo risco e foi uma escolha sem medo, e feliz.
As músicas são curtíssimas se comparadas com os trabalhos anteriores, clássicos
como O
Homem na Estrada e Capítulo 4, Versículo 3, têm 8 e 7
minutos, respectivamente, enquanto as faixas de “Cores e Valores” tem duração
média de 2 a 4 minutos. O novo trabalho do Racionais MCs resgata o conceito de
álbum, do diálogo entre uma música e outra em uma obra, coisa difícil de se
manter em tempos de downloads e streamings. Saíram na frente com a
proposta. O próprio KL Jay alerta que este é um disco para ser ouvido na íntegra,
na sequência proposta.
Os temas
abordados também se diversificaram. Para além das dificuldades da periferia
brasileira (e até essa crítica assumiu outro tom), o Racionais falam agora das
vitórias alcançadas e de amor. Os fãs mais ortodoxos esperavam algo parecido
com o que foi apresentado em 2002, quando “Nada como um Dia após o outro dia”
foi lançado, mas aquele trabalho já rompia com a narrativa de violência e
exclusão apresentada em Sobrevivendo no Inferno (1997).
A
realidade é que para muitos o Racionais havia se tornado muito mais que um
grupo de rap. O quarteto paulistano se transformou em um símbolo, cujas ações,
falas e frases foram apropriadas por
todos os que se sentiam representados por elas e a reação a qualquer mudança de
postura não seria amena, tamanha a importância que seus discursos ganharam,
mesmo que não se sentissem tão a vontade com isso.
Enfim. O
Brasil mudou, a realidade dos integrantes do Racionais idem e, nada
mais natural que a música feita por eles acompanhasse essa mudança.
O
discurso já se mostra ácido no início quando Brown declama “Na terra onde o
herói matou um milhão de índios” e segue. O grupo continua falando do lugar de
onde vierem, sob uma nova perspectiva, mas é do lugar do negro. Ice Blue
acentua seu poder de consumo na faixa “Eu compro”, mas deixa claro que nem
o poder aquisitivo altera o fato de ser um negro no Brasil:
“um pingente de ouro com diamante safira, no
pescoço um cordão os bico vê não acredita, que um neguim sem pai que
insiste pode até chegar, entrar na loja ver uma nave zero e dizer, eu quero eu
compro e sem desconto, à vista, mesmo podendo pagar tenha a certeza de que vão
desconfiar, pois o racismo é disfarçado há muitos séculos, não aceita seus
status, nem sua cor”.
Os versos
acima talvez sejam um pouco do que representa “Cores e Valores”. O indivíduo negro
que outrora somava-se à massa de despossuídos ostenta uma vitória e uma
condição que nunca lhe foi atribuída ou permitida. Possibilidade
proibida, quase como uma afronta, e que agora é assumida, fazendo coro aos
garotos do “rolézim” e aos pobres que agora incomodam a classe média brasileira
quando ocupam, sem pedir licença, shopping centers e aeroportos.
Em “Você
me Deve” Brown exclama “Vida
loka original, dos barracos de pau. Percebeu, que o vil
metal só não quer quem morreu, morou meu? ”
Os Racionais ,
como não poderia deixar de ser, continuam a cantar a periferia, mas uma
periferia que percebe seu poder, ganhou alguma mobilidade – ainda que mínima - e quer mais, muito mais do que falar das suas
mazelas. Quer espaço. Quer poder. Quer voz, num momento em que tem condições
para tanto. A capa de Cores e Valores
reflete essa periferia, que não vai pedir licença e vai ocupar o lugar que lhe
é devido. É trajetória do próprio grupo, descrita de forma metafórica naquela
imagem. Uma espécie de síntese das batalhas empreendidas em 25 anos, período em
que viveram no front e tiveram que lidar com o peso da narrativa apresentada
por eles bem como os ataques de um país moralista, elitista e, desde sempre,
racista.
O
disco abre espaço também para a auto-reflexão do grupo que completa duas
décadas e meia e experimentou episódios gloriosos e tristes. Em “A Praça” Edi Rock relembra o evento
trágico acontecido durante o show da banda na Virada Cultural 2007, que
resultou em diversos feridos na Praça da Sé. Fato superado. Os
sobreviventes do inferno mostraram em sua turnê comemorativa o quanto estão
amadurecidos bem como a capacidade agregadora do seu discurso, que hoje
atinge jovens e adultos das mais diversas classes e localidades. A voz forte de
Edi Rock retorna em “O Mal e o Bem”, faixa que traz
elementos da música negra produzida em meados dos anos 80, a qual o rapper
relembra os 25 anos de trajetória e os momentos marcados pela música do grupo.
“Quanto vale o show”, primeira música do
novo trabalho a ser divulgada, traz o sampleia “Gonna fly Now”, tema de Rocky o Lutador. A trilha é emblemática e,
a exemplo de “O mal e o Bem” também é saudosista. Brown relembra sua juventude
na selva de pedra paulistana, os primeiros bailes, as dificuldades financeiras
e sua relação com o samba e o soul, com ídolos como Curtis Blow e Bezerra da
Silva. O verso é viceral e tenta trazer a energia daqueles dias e denuncia que,
ainda naquela época “O preto vê mil
chances de morrer, morô? Com roupas ou tênis sim, por que não?”. Anos atrás Mano Brown foi surpreendido com a
reação virulenta dos fãs contra a sua “Mulher elétrica”, música dançante, com
base funk sampleada do clássico Eletric Lady (Confunkshun). Sem se intimidar,
Paulo Soares apresenta outra balada soul com “Eu te Proponho”, primeira letra romântica da discografia do
Racionais, homenageando mestres como Cassiano, já apresentando um pouco do que
pode vir a ser o seu já anunciado disco solo.
Embora
não seja o tema principal, o crime e a violência continuam a ser tratados nos versos
do grupo, como na faixa “A escolha que eu fiz”.
Cores e
Valores não é unanimidade, como nenhum dos álbuns anteriores, embora possa ser
o mais controverso eles, mas, assim como os demais, demarca sua passagem com
dignidade.
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