quarta-feira, 11 de maio de 2016

Após a ressaca

É hora de juntar os cacos de uma democracia que agora só existe na ideia.  A participação popular na escolha do chefe de Estado, suspensa desde 64, retornou em 1985, mas só se efetivou de fato em 1989 e amadurecemos desde então. Até ela, com pouco mais de três décadas, ser interrompida novamente na noite de 11 de maio de 2016. O que houve não é qualquer coisa. Quem apoiou essa arbitrariedade de forma irresponsável contribuiu para o surgimento de um precedente muito perigoso. Os políticos aprenderam que, numa democracia imatura tudo é possível e que eles podem comandar o jogo a seu bel prazer. Para quem acha que é exagero de quem compara esse período com o de 1964, basta ver a postura arrogante do judiciário, a patrulha ideológica que já se iniciou nas universidades e escolas, impedindo estudantes de debaterem o atual momento e professores impedidos de dar suas opiniões porque querem que prevaleça uma determinada versão da história, como foi antes. Temo pelo futuro deste País, temo ter voltado à época em que quem é como eu, preto, favelado e sem bens, tinha o subemprego como futuro certo se tivesse sorte. Temer conta agora com a aliança de sujeitos como Malafaia, conhecido por seu fundamentalismo e preconceito. A perseguição contra as religiões de matriz africana, que nunca cessou, deve aumentar agora.  
Quem agora comemora a repressão à esquerda não percebe que essa mesma violência pode atingi-lo amanhã se quiser protestar contra o governo que agora está aí ou contra qualquer coisa que o incomode dentro do atual status quo e que não fez mais nada além de mostrar que o voto é algo para não ser respeitado, não importa se é seu ou se é meu. Nossa luta agora é por um Brasil onde não prevaleça a ignorância e o obscurantismo, onde a voz conquistada por mulheres, negros, pobres, LGBTs, quilombolas e indígenas seja respeitada. Uma coisa é fato: daqui não saímos,  não saímos da militância nas ruas nem das redes. 

quinta-feira, 28 de abril de 2016

Violência da exclusão que gera violência


Pobreza por si só é violenta, porque exclui. Esse é um ponto. Mas não é a pobreza que causa a violência urbana, como muita gente pensa, é a desigualdade. Parece obvio, né?
Lembro de uma entrevista do Gilberto Dimenstein em que ele abordava o tema e citava países miseráveis como a Índia, onde o índice de violência era bem menor do que aqui. Motivo? Em poucos lugares do mundo o contraste social é tão gritante. Sobe o Morro do Papagaio pra ver. A linha que separa os barracos dos casarões é nula, a discrepância de oportunidades entre quem tem e quem não tem é gritante. 
Na minha adolescência eu lembro de amigos que falavam em "roubar o tênis do boy" e havia muito ressentimento naquela fala, raiva mesmo. Porque não importava o quanto trabalhassem, eles não poderiam nunca ter o símbolo de status que estava ao alcance de quem morava no "asfalto" e que era oferecido pra eles, pra gente, da mesma forma. O Brasil mudou. O "tênis" e alguns outros símbolos de status não eram mais um problema, ainda assim continuávamos uma das piores distribuições de renda do mundo.
Alguém do outro lado não entendeu a equação, e reclamou de programas de distribuição que contribuíam para a redução dessa desigualdade violenta que gera violência. Devido a uma série de fatores as preces de quem queria dar fim a isso foram atendidas.Burrice. Com a iminente redução de direitos, redução de acessos, acirrando ainda mais as diferenças, eu não vejo uma realidade boa pra ninguém. É um contexto violento dos dois lados, mas eu sei muito bem quem perde mais nisso tudo.

sábado, 27 de fevereiro de 2016

Elite Cultural


Quando ingressei na faculdade de jornalismo em 2003, na Newton Paiva (só no ano seguinte iria para a PUC), ainda não existiam programas como Pró Uni ou mesmo o sistema de cotas sociais e raciais. Naquela época, ir para um centro universitário, uma universidade, ainda era um processo pra poucos. A federal, sempre muito concorrida, desencorajava gente que, como eu, só há pouco havia se convencido que poderia mesmo fazer uma graduação. Sim, pobres e negros (e negro frequentemente é pobre) precisam se convencer de que pertencem àquele espaço. Ainda mais naquele período, anterior à toda essa moçada empoderada que andou tomando de assalto as espaços acadêmicos públicos via ações afirmativas, e com resultados exitosos. Não tínhamos essa referência ainda. Entrar para as particulares também não consistia tarefa fácil. Ainda eram poucas as instituições privadas existentes e, mesmo com uma concorrência menor em relação à UFMG, as vagas eram bem disputadas, por muita gente vinda de boas escolas particulares. Enfim, de qualquer forma era a famosa “competição justa” da qual sempre ouvimos falar. Passei em 15º. Nada mal, considerando o meu baixo nível de auto-confiança e auto-estima para encarar a empreitada. Ao passar, feliz com o resultado e comemorando o fato de ser o primeiro homem da família a ingressar numa instituição de ensino superior, sendo eu a quarta geração de indivíduos nascidos “livres” em território brasileiro... Sim, só isso. 
Parece que foi num passado longínquo, mas 117 anos não é tanto tempo assim, é literalmente “ontem”. Se o processo de auto-convencimento de que deveria ocupar aquele espaço foi penoso, difícil, de uma forma que só quem vem da mesma realidade pode entender, conseguir passar foi uma grande recompensa, mas ainda havia a questão financeira. Lembrei-me de um samba do Martinho da Vila, onde ele narra a história do sujeito pobre que passava num vestibular, mas numa faculdade particular. Meu caso. O próximo desafio do aluno de baixa renda era justamente arcar com os custos. Minha mensalidade custava em torno de R$ 521,00 e eu tinha um salário de R$ 300,00, como “pau pra toda obra” em um laboratório de análises clínicas. Eram dois meses de trampo para uma mensalidade, mas encarei assim mesmo, e não fui o único. Uma vez lá dentro soube de outros colegas com poucas condições financeiras que também se arriscaram, esperando que algo mudasse pra melhor no meio do caminho. Invariavelmente, esses alunos abandonavam os cursos. Boa parte desses pouquíssimos que tentavam, jamais retornariam para qualquer outro espaço acadêmico. No fim, sentíamos na prática a desconstrução da falácia do mito do “homem que se faz por si mesmo”, como se o ambiente em volta e as condições sociais e históricas não contassem.

Na primeira semana de aula, o reitor, e também um dos donos da faculdade, recebia os alunos recém chegados com muita pompa, num grande auditório. Não me lembro de quase nada do discurso, a não ser a parte em que ele dizia: “De agora em diante vocês são a elite cultural deste país”. Aquilo ficou martelando, talvez por vaidade e deslumbramento de alguém que achou que jamais pisaria ali, mas hoje vêm novas reflexões. Primeiro sobre a possibilidade de alguém, ou um grupo, ser alguma “elite cultural”, porque isso pressupõe a possibilidade de hierarquizar cultura, mas a leitura mais acertada que fica mesmo é a dos meios nas mãos de poucos. Pode não ser isso o que ele tinha em mente enquanto falava, mas, na prática é só um jeito de atestar o conhecimento, e o possível domínio de produção cultural e econômico em detrimento dos demais, sem os mesmos acessos e combalidos financeiramente, principalmente em relação à maioria dos que podiam ocupar aquelas cadeiras. 
E, pensando mais um pouco, reflito o quanto é antipedagógico e destrutivo esse conceito de “elite cultural”, num país de dimensões gigantescas, com tantas manifestações e profundas desigualdades. , naqueles dias maiores do que hoje, acredite. 
Há também a visão de que justo ou não, aquilo, estar ali, consistia num privilégio, não deveria ser, mas era e ainda é.Talvez isso só sirva para reforçar uma ideia de separação entre “os que sabem” e “os que não sabem”. 
A despeito do "privilégio" em relação à grande maioria dos meus pares, não sou, nunca fui, e nem pretende ser elite de coisa alguma. Meu status ainda é de guerrilha, tentando ocupar espaços. Anos depois de oficialmente graduado, embora em outra instituição e como bolsista, sigo aprendendo.