terça-feira, 8 de outubro de 2013

RESPEITO É PRA QUEM TEM

A história de Sabotage é a síntese da saga do próprio rap nacional, inicialmente desacreditado, oriundo dos grotões das periferias dos grandes centros e hoje é celebrado e respeitado até mesmo por quem jamais teve o menor contato com a arte.
A trajetória de Mauro dos Santos, o Sabotage, se confunde com a de milhares de jovens rappers que surgiram durante a segunda metade da década de 90, inspirados por nomes como Thaíde e DJ Hum, Racionais MCs, Gog, Possemente Zulu, Câmbio Negro...
O Poeta do Canão, nome dado em referência à favela em que ele cresceu, na zona sul de São Paulo, era a representante vivo, autêntico e sem maquiagem, de uma parcela do país que, embora numerosa, permanecia invisível para os meios de comunicação. Preto, pobre e artista de um segmento tratado, até então, como uma espécie de subcultura praticada pelos iletrados e alijados da “alta cultura”, sempre distantes dos recursos que lhes possibilitariam produzir “música de qualidade”.

Quando muito, o trabalho recebia um olhar condescendente de quem o compreendia como expressão exótica de garotos favelados que precisavam manifestar suas mazelas e revoltas. Sabotage significou, entre outras coisas, uma quebra de paradigmas no terreno então pouco conhecido do rap brasileiro. Com raríssimas exceções, entre as quais estão artistas como Racionais MCs (ícones máximos do gênero), poucos discos de rap haviam recebido, naquela época, tratamento que os colocasse em pé de igualdade com outros lançamentos do mercado fonográfico nacional. Rap é Compromisso, seu único álbum, já nasceu clássico.  Produzido por Daniel Ganjaman, saiu pelo selo “Cosa Nostra” do próprio Racionais, com distribuição da multinacional Sony Music, além de receber a valiosa chancela do RZO, grupo responsável por mudanças significativas no rap paulistano e, consequentemente, no rap nacional como um todo.

O rapper não passou a integrar a programação das emissoras comerciais de rádio, movidas pela lógica do jabá, mas entrou para o primeiro time do chamado “undergrownd”, numa escalada que muitos consideraram repentina. Além de contar com participações em seu álbum de figuras como Black Alien (então, vocal do Planet Hemp), Chorão (Charlie Brown Jr), Rappin Hood e outros nomes respeitados na cena de São Paulo como Sombra e Bastardo (SNJ) e  Ébano (Potencial 3) , Sabotage participou de gravações com Sepultura, B Negão, SP Funk, dividiu o palco e cenas com o titã Paulo Miklos, recebeu o prêmio de melhor trilha sonora pelo filme “O Invasor”, verdadeiro marco do cinema nacional, e ainda viveu o personagem “Fuinha” no bem sucedido Carandiru, longa metragem de Hector Babenco, onde contracenou com Wagner Moura, Rodrigo Santora e a eterna “ex-chacrete”, Rita Cadilac.
Toda essa ascensão "meteórica” aconteceu no período de um ano, tempo entre o lançamento do seu disco e a morte violenta que interrompeu sua carreira. Não são poucos os que atribuem ao trabalho do velho Sabota uma boa parcela da responsabilidade pelo respeito que o rap alcançou recentemente. E o papel do  seu trabalho é inegável, sem dúvida. Mauro dos Santos foi um dos primeiros a romper com um certo tradicionalismo e provar que a interlocução com outros segmentos era possível, mais que isso, era desejável e necessária. Mostrou na prática que ocupar os espaços e manter a autenticidade não eram coisas incompatíveis, e abriu precedentes para que uma vindoura geração de MCs seguisse caminhos antes inalcançáveis e até condenados dentro do universo das rimas e batidas.
Sabotage quebrou uma certa noção preestabelecida de “limites” para os padrões do rap nacional e rompeu com a própria invisibilidade decorrente da sua cor e classe social. A história do jovem que abandonou o tráfico por ter encontrado na arte uma alternativa traz reflexões importantes sobre outros potenciais que se perdem pela ausência de oportunidades, falta reforçada pelas políticas cegas e ineficazes de combate ao crime, mais centradas em gerar corpos e prisões do que em desenvolver ações capazes de promover a inclusão.

Tive a feliz oportunidade de conversar com Mauro Mateus, antes mesmo de tudo o que aconteceu com a sua música, ainda no início da carreira. "Maurim", como era chamado pelos mais próximos, era simples, dono de uma inteligência inata que lhe permitia vislumbrar horizontes a quilômetros de distância. Na época ele sugeriu de nos ajudarmos mutuamente, quando os respectivos CDs fossem lançados. Nunca mais o vi. Já naqueles dias ele contava com as bênçãos dos gigantes lendários do rap brazuca (Racionais, Thaíde, Rappin Hood...), mesmo assim tinha a sensibilidade de perceber que o caminho era construir pontes.  Sabotage representou a todos nós e ensinou também que “rap é compromisso, não é viagem...” Assim como um de seus versos, ele não fez sua "parte pela metade", e deixou bem claro que “respeito é pra quem tem”.