domingo, 19 de outubro de 2014

Já perdemos


Nestes dias de demonstrações públicas de intolerância, preconceito e muita desinformação, fica patente (mais ainda) o nosso despreparo gritante em lidar com as diferenças.  Me assustei muito com a dificuldade de compreensão e a leitura limitada de mundo, e isso vindo de gente jovem e supostamente “esclarecida”, numa época em  que o conhecimento está mais acessível do que nunca.  Atribuíram a “ignorância” e a “desinformação” ao povo nordestino, devido à escolha feita por eles durante o primeiro turno das eleições, quando a maioria dos votos foi para Dilma Rousseff, mas foi nas regiões desenvolvidas economicamente que vi, li e ouvi as manifestações mais assustadoras e violentas, partindo justamente dos mesmos que desqualificaram de forma tão vil a escolha dos nordestinos. A violência que tem se propagado nestes dias é tanto física quanto verbal. Coisas inacreditáveis trazendo à tona as piores e mais retrógradas facetas da “humanidade”. Em suma: isso denota qualquer coisa, menos “esclarecimento”.

Independente dos rumos a serem seguidos daqui em diante, sofremos, a priori, uma derrota que não depende do resultado das urnas. Imaginava que estávamos em um determinado patamar de civilidade e tolerância, mas me enganei. E o problema tem raízes mais profundas que a mera falta de acesso à educação formal. Não é o caso e as agressões, mesmo que muitas vezes se restrinjam ao campo do simbólico, não têm partido dos grupos social e historicamente marginalizados.


Está claro que somos uma sociedade míope e ensimesmada cujo olhar, salvo raras exceções, tem se mostrado incapaz de ir além dos limites do próprio umbigo, com preconceitos velados há séculos e que agora se mostram escancarados, ainda que dissimulados. E seguimos assim, norteados não pelos direitos coletivos ou indignados com a privação do outro, mas pelo viés mais mesquinho no qual os “meus” e os “seus” direitos estão em primeiro lugar e se transformam em privilégios na medida em que a preocupação primeira não é torná-los acessíveis a todos.  Se não conseguimos nos conectar e nos transformamos em uma sociedade em que apenas o espelho é tolerável, nós já perdemos.

domingo, 13 de julho de 2014

A "elite" brasileira já nasceu falida


Nossa "elite" está longe de ser exemplo para alguma coisa. Os afortunados do Brasil são exemplo sim de má educação (demonstram isso publicamente em estádios), egoísmo, desconhecimento histórico, obscurantismo e preconceitos que são inexplicavelmente assimilados pelas classes populares. Francamente, não dá para chamar exatamente de “intelectualizado” um grupo que tem em uma publicação como a Veja a sua principal porta voz. A “elite” deste país não é sequer esclarecida, é moldada em grande parte pelo medo. Medo da perda de posições, da perda da exclusividade, da perda do poder. Uma pseudo aristocracia ridícula e atrasada que se coloca contra os avanços mais básicos incluindo políticas de inclusão social como reforma agrária, ações afirmativas ou qualquer movimento que ameace seus privilégios. É tão míope que consegue enxergar “privilégios” nas tentativas ainda ínfimas e insuficientes de repartir o bolo com o restante da população que não se encontra entre os eleitos pela falácia da meritocracia, facilmente desmentida pela experiência do cotidiano, ou  com dados básicos acessíveis com uma busca simples pelo Google.  Este atraso de pensamento não deixa de ser sintomático em um país que foi o último a abolir o regime escravocrata, mediante pressão internacional ainda. É uma casa grande desesperada em manter a “senzala” à distância. Pela sua incapacidade de acompanhar qualquer mudança, é uma elite que já nasceu falida.

O pior é perceber que este conjunto de bobagens inspira quem aspira alcançar a posição dos 10% mais ricos: o comportamento egoísta, a ojeriza a tudo que venha das classes populares e o medo. Só que, neste caso (dos aspirantes à elite), é o medo ainda mais irracional de perder o que sequer foi alcançado. Não deixa de ser curioso, como uma classe mimada que coloca entre suas maiores preocupações a perda do acesso exclusivo a aeroportos consiga ter uma base tão gigantesca de candidatos e como essa ideologia pode ser replicada de forma tão massificada e irrefletida.

quinta-feira, 5 de junho de 2014

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Liguei a TV numa manhã, não me lembro o dia, e o jornal mostrava cenas de um homem chamado Natanael em seus últimos momentos de vida. Acuado, o homem negro que aparentava ter entre 27 e 30 anos tentava se desvencilhar de um policial militar armado que não pretendia apenas prendê-lo. Natanael não tinha nada nas mãos e queria se entregar, se isso fosse possível. Desesperado ele repetia  “vou morrer, você vai me matar”. O que veio a seguir foi um estampido, seco, precedido do silêncio.

O vídeo foi feito por um celular e ajudou e desmentir a versão do BO que dizia que Natanael havia trocado tiros com os policiais. Não me inteirei sobre o restante da história, não sei quem era o homem chamado Natanael, só sei que vi uma execução e fiquei péssimo com aquilo, de uma forma que não consegui descrever nem para mim mesmo. Vi um homem acuado, num jogo de gato e rato, alguém que engrossou as estatísticas às quais pertencem DGs, Cláudias e Amarildos Brasil afora, desde muito tempo.  Me senti pequeno como nunca me senti antes, impotente como jamais poderia imaginar, porque ali não havia nada que alguém pudesse fazer, o fato estava no passado,  morbidamente registrado talvez pra nada, porque Natanael não foi  a primeira e nem  última vítima deste tipo de violência, fato recorrente nas áreas mais pobres, contra  os mesmos grupos e, quase sempre, perpetrada por agentes do estado.

Neste dia não engoli o choro, não deu, não quis. Também não posso e não quero fingir que nada aconteceu. Natanael, seja quem for, deixou mulher, pais e filhos.  E se nada for feito, ele continuará sendo apenas mais um número numa estatística triste, que se repete ano após ano, década após década, na qual pobres, oriundos das periferias brasileiras, são as principais vítimas da violência urbana.




quarta-feira, 7 de maio de 2014

Ninguém aqui é macaco


A essa altura o episódio em que o jogador Daniel Alves foi hostilizado por um torcedor que lhe arremessou uma banana já é notícia velha. Mais uma dessas manifestações racistas imbecis, que são muito mais um indício de pouco desenvolvimento mental do sujeito do que de “maldade” propriamente dita. Alves foi rápido na reação, ao comer a banana e marcar o gol contra o time do agressor. O que se segue  é algo que extrapola (negativamente) a própria reação do jogador, com manifestações de "apoio" que, se de um lado apontam uma certa intolerância torta ao racismo (pelo menos no futebol, porque no cotidiano ele passa totalmente batido), do outro apresenta um raciocínio geral limitado em relação a todo um processo de redução, desumanização da população negra no país.
Quando vi várias pessoas, entre anônimos e “celebridades” compartilhando a hashtag #SomosTodosMacacos fiquei curioso pra saber de onde veio, e se já me causava uma reação negativa natural isso aumentou  quando soube da ideia publicitária por traz de tudo. Mais ainda quando vi Luciano Huck fortalecendo a pseudo campanha anti-racismo, que mais revela e fortalece o preconceito que qualquer outra coisa.
 Compartilhei a indignação no meu perfil do facebook, já esperando os ataques uma vez que o absurdo parecia ser um consenso, até por contar com a assinatura do Neymar. Supreendentemente tive apoios  com os quais não contava. O post traduz o sentimento melhor que qualquer explicação que eu possa dar agora e tenho dito: #NinguémAquiÉmacaco



A campanha do "todos somos macacos" é uma criação publicitária travestida de movimento, e equivocado ainda por cima. 
A ideia "brilhante" (Só Que Não) foi desenvolvida pelo publicitário Guga Ketzer, com a intenção de "tirar a força da palavra do agressor preconceituoso". 

Despolitizar a questão vai na contra-mão de todo um processo de luta de negros e negras contra a pecha estigmatizante do "macaco". O xingamento em questão sempre foi usado com o objetivo de desumanizar, reduzir quem já foi espoliado das mais diversas formas.

Pra quem não sabe o que é isso na pele (literalmente) ou se porta como mico domesticado aderindo a qualquer coisa sem reflexão, é muito fácil adotar o sorriso blasé de "gente bonita e descolada" pegando carona no ato do Daniel Alves (que tem outro contexto). Na prática a parada toda acaba reforçando o discurso da turma do deixa disso, de que preconceitos e afins são culpa do discriminado. Aquela coisa repugnante de se ouvir e ler:"o maior racista é o próprio negro".

Gol contra, Neymar. Prefiro ficar como antipático (assumido), sem esportiva a compartilhar a tal hashtag. Não sou macaco, muito menos amestrado por campanhas idiotizantes.

terça-feira, 18 de março de 2014

Entre Amarildos e Cláudias



 Amarildo, ajudante de pedreiro, outrora anônimo, cujo nome virou sinônimo de marginalizados que engrossam as estatísticas dos desaparecidos nas favelas brasileiras. Os demais “desaparecidos” sequer têm nomes ou rostos.
Essa semana outro nome virou sinônimo de brutalidade nas periferias dos grandes centros: Cláudia Silva Ferreira, mulher de 38 anos, moradora do Morro da Congonha (RJ) baleada e depois jogada no porta-malas da viatura que abriu e arrastou seu corpo por vários metros.

Ouvi pelo noticiário que vão investigar o motivo do porta-malas se abrir durante o trajeto quando os questionamentos mais básicos não estão sendo feitos. Os policiais abriram fogo de forma irresponsável em uma comunidade sem se preocuparem se alguém poderia ser atingido. Nada novo, a história é velha e não será a última ocorrência. A segunda questão é o descaso com que Cláudia foi tratada, jogada no porta-malas da viatura... Não é apenas descuido é descaso.  Tudo motivado pela certeza de que ali, naquele local, residem grupos humanos (ou nem isso) menos dignos de respeito.  Antes de criar unidades pacificadoras é necessário humanizar a polícia.

quarta-feira, 5 de março de 2014

ROBOCOP

José Padilha supera o estigma dos remakes ao apresentar uma versão relevante do policial do futuro

José Padilha, responsável pelos dois “Tropa de Elite” e “Ônibus 174”, encarou um desafio espinhoso ao refilmar o clássico Robocop, do profícuo cineasta Paul Verhoven.  Há tempos Hollywood sofre de uma profunda crise criativa (dos produtores e não dos diretores), resultado do inchaço da própria indústria que a obriga a recorrer a fórmulas comprovadamente funcionais e rentáveis, e eis que os famigerados remakes se apresentam como soluções excelentes para manter os cofres aquecidos. Claro, o resultado, na maioria das vezes é catastrófico, vide a versão (desnecessária, como a maioria) do filme Psicose, de Alfred Hitchcock.  A desastre comprovado no desperdício de película em questão serviu como aviso de que algumas coisas não precisam e não devem ser refeitas, embora isso pouco signifique para a lógica do lucro, que, no fim das contas é o principal motor da máquina hollywoodiana.
Enfim, em meio a este cenário de reproduções caça-níqueis, o Robocop do brasileiro José Padilha consegue um resultado bem acima da média. Embora o estilo marcado pelo humor ácido e violência explícita constituíssem características marcantes das obras de Paul Verhoven, o que torna ainda mais complicada qualquer tentativa de emulá-las, Padilha imprime sua própria visão e estilo ao filme.  A história, que explora o papel das megacorporações e sua influência na política e, consequentemente, na vida cotidiana, estabelece diálogo direto com os trabalhos do diretor brasileiro, que já explorava o tema da violência exercida pelo poder em seus filmes anteriores. Sob o olhar de Padilha, a história do policial Alex Murphy abordou temas atuais, como a crescente militarização da segurança pública, e apresentou situações que servem de alusão tanto à interferência bélica dos Estados Unidos no oriente médio e demais economias em desenvolvimento, quanto às ocupações das favelas cariocas, através das UPPs (Unidades Pacificadoras). A violência apresentada no filme de 1985 era clara, sem subterfúgios, além de tratar de outros temas incômodos e que ainda são pautas para a sociedade atual. A nova versão mantém a relevância e consegue ser mais que uma simples (e dispensável) atualização do original. O drama do homem que tem mais de 90% do seu corpo substituído por próteses cibernéticas e se esforça para manter sua humanidade ganha outros contornos, deixando a perspectiva do policial Alex Murphy mais evidente.  Samuel L Jackson interpreta um apresentador sensacionalista e reacionário, bem ao estilo Sheherazade e Datena, o que conduz o espectador pelo viés ideológico da mídia vigente, bem como pelo loby dos setores conservadores, ao mesmo tempo em que apresenta um sub-texto que contradiz o discurso oficial apresentado. O filme traz pontos de vista diversos, sobre questões que estão longe de ser simples o que fez com que alguns o apontassem como uma obra confusa e indefinida. Para mim, a escolha por uma visão caleidoscópica é ousada e traduz bem o grau de fragmentação em que as sociedades se encontram. A transcrição de um cenário complexo como este não é tarefa das mais simples, mas o resultado não deixa a desejar.

Entre tantas coisas, é bom perceber que a assinatura de Padilha se mantém intacta e, independente das inevitáveis comparações com o anterior, para o bem e para o mal, o novo Robocop não é um mero pastiche e não supera apenas a qualidade duvidosa da onda de remakes, é também um filme de verão superior a outros trabalhos feitos para agradar a audiência.

domingo, 2 de fevereiro de 2014

Paradigmas em desconstrução (não é só um beijo)


Uma das primeiras coisas que se aprende na faculdade de comunicação é que a mídia não muda opiniões já arraigadas na sociedade, mas influência na medida em que pode dar maior ou menor visibilidade a determinadas tendências e demandas. Claro que isso não exime os meios de comunicação da sua parcela de responsabilidade, uma vez que a afirmação acima pode servir como desculpa para a reprodução irresponsável de preconceitos, e não há inocência nisso.

 O beijo do final da novela “Amor à vida” é um exemplo feliz da contribuição dos meios de comunicação no debate de temas púbicos. Muito antes de entrar no mérito da qualidade narrativa das produções - salientando que a novela em questão é um dos melhores produtos da teledramaturgia nacional dos últimos anos – vale lembrar que a representação da diversidade cultural, social e étnica nos meios midiáticos é de grande importância para afirmação e aceitação das identidades.  A ausência ou a representação estereotipada das minorias (negros,  mulheres, gays, pobres...) nos veículos de massa serve apenas para reafirmar o lugar desprivilegiado já ocupado por estes grupos, bem como para a continuidade dos efeitos nefastos dessa exclusão.  Antes mesmo de ser uma iniciativa da TV, o beijo homoafetivo em “Amor à Vida” aponta para a mudança na mentalidade de uma parcela significativa da população.

Me lembrei do primeiro beijo inter-racial na TV, protagonizado por Kirk e Ohura na série Star Trek, na América racista dos turbulentos anos 60. A comparação com o que foi realizado na novela global não é descabida.

 O preconceito continua, mas um passo importante foi dado. Faltam outros tantos, como um número de atores negros nas TVs correspondente ao percentual de afrodescendentes no Brasil, representações cada vez menos caricatas das chamadas minorias e, por fim, comemoração válida mesmo será no dia em que essas reivindicações se tornarem desnecessárias.